Sérgio Rodrigues de Souza
A memória e a retórica
estavam, estreitamente vinculadas nos processos religiosos da Idade Antiga. O
que resta-nos esclarecer é porque existia este vínculo entre uma e outra e a
resposta pode ser a de que ao orador não era somente pré-exigido que falasse
bem e com extremada eloquência, clareza na exposição, tonalidade e fluência;
ele tinha que seguir todo um ritual, utilizando de todo o seu potencial
mnemônico, porque esta era uma exigência sagrada e ao mesmo tempo política.
Toda a proteção da cidade, a fertilidade, a segurança, as vitórias nas guerras
dependiam deste rito sacro-político.
Uma vez exposta, brevemente,
esta apresentação sobre o porquê de memória e retórica estarem vinculadas, resta-nos
saber de que maneira, a memória e a retórica estavam vinculadas na Idade
Antiga. Que elementos estavam promovendo este vínculo, de modo tão eficiente?
A memória é um fator
primordial para uma boa condição e pré-existência da retórica, porque o orador
necessita lembrar-se de passagens marcantes, que foram pensadas durante a
elaboração do seu discurso e expressá-las, fazendo uso dos instrumentos de
acordo com a análise prévia de seu público, adptando-as, da maneira que se faça
conveniente. Isto caracteriza-se como uma situação que persistiu atual, porque
ainda que, na atualidade se faça uso da escrita como forma de lembrar das
letras, o arranjo fonético ainda é uma condição cognitiva, impossível de ser
transcrita, em sua íntegra. O que se transcreve é uma aproximação traduzida em
graves, agudos, inflexões de voz, entre outras coisas, mas a tonalidade
intrínseca é uma experiência que se mostra única e intransferível, dependente
da condição de saúde e conservação da memória para que ocorra, de modo pleno.
Na Antiguidade, antes da
existência da escrita, o trabalho do orador era mais complexo, porque deveria
lembrar-se de todo o ritual que havia sido aprendido e apreendido, em todas as
suas minúcias, prestando atenção a cada mínimo detalhe exigido pelos deuses, na
hora da sua apresentação.
Assim que, não se tratava de
falar bem, era algo muito além disto, o orador deveria entoar os cânticos e
hinos sagrados, as orações obedecendo a mesma métrica fonética original com as
quais foram criados. Tratava-se de uma disciplinarização mnemônica que jamais
foi vista e experimentada, com tamanho rigor e obediência aos princípios
canônicos, em qualquer outro momento da história humana.
Este trabalho justifica-se
por realizar uma análise descritiva deste procedimento e os fundamentos que o
marcaram, o que em muito pode contribuir para o crescimento do arcabouço
científico, ao apresentar o aspecto correlacional entre o contexto histórico e
político que marcavam esta conjuntura. Faça-se esclarecer que, na Antiguidade
não havia Estado Laico. Religião e
política representavam um único elemento, havendo as disputas pela posse do
poder e suas intrigas.
Com relação à relevância
social apresentada por tal esclarecimento, aplica-se no ponto de esclarecer ao
público amplo, que houve um momento na história humana em que a memória foi
sobrevalorizada, não sendo estendida este dom a todos, mas tão somente àqueles
que havia sido escolhidos para representar a cúria sagrada. Executava-se todo
um ritual de estudos desde mui tenra idade para que o aprendiz treinasse sua
condição mnemônica ao extremo.
A memória estava ligada à
retórica pela ação de que havia todo um culto direcionado aos deuses, aos
mortos e estes reclamavam que todo o discurso seguisse uma linha muito
retilínea, no que se referia aos ordenamentos fonéticos e linguísticos. As
preces, as orações, os cânticos, dizeres, todos tinham que obedecer aos mesmos ritos
de variabilidade de tons e timbres, tal qual foram criados e apresentados aos
deuses, em sua primeira vez. Assim, a cada geração de novos sacerdotes estes
deveriam lembrar-se de cada detalhe, sob pena de despertar a ira divina contra
si e contra o povo. Os elementos responsáveis por este vínculo tão estreito
entre a memória e a retórica era o culto religioso dedicado aos manes e aos
deuses domésticos e municipais, que assim, o exigiam que fosse e eram
extremamente raivosos, iracundos, vingativos.
Memória e
retórica são dois componentes da existência humana que existiram na mais
perfeita consonância durante o período da Idade
Antiga, porque, como não havia desenvolvido, ainda a escrita, os
Sacerdotes, os Reis, os Poetas, Oradores, Mestres, Recitadores tinham que
guardar todas as informações, textos, corais, poesias, rimas e citações, em
suas respectivas memórias, para depois poderem reproduzi-las com a mais elevada
fidedignidade.
Isto gerava uma
necessidade de que o aprendiz tivesse uma disciplina muito aguçada durante seu
tempo de formação, aprimorando, por meio de técnicas seletas, os mecanismos de
organização da memória a fim de armazenar uma quantidade volumosa de
informações. Agregado a isto, estava a questão de que não bastava recordar as
letras dos textos que eram ensinados por meio da oralidade; havia que recordar
de igual modo, a métrica do texto, o enredo, o ritmo da oração, da música, a
entonação, porque assim era exigido pelos deuses.[1]
Quando o
sacerdote elaborava as cerimônias públicas, fossem elas fúnebres ou ordinárias,
tinha a obrigação de seguir à risca todo o conjunto de expressões que havia
aprendido. As palavras, os sons, os gestos, todos, deveriam seguir um rigor
ordinário, sob pena de macular todo o ritual e com isto, atrair a ira divina
sobre o povo.
Da mesma forma,
era o poeta que recitava as histórias dos heróis e deuses nacionais; não
bastava que fosse eloquente, deveria convencer, por meio da oratória, levar o
povo ao estado de êxtase, por meio de seu discurso. E ele deveria lembrar-se,
fidedignamente dos feitos do herói ou deus que estivesse sendo cultuado, não
podendo improvisar durante sua fala.
Memória é um
componente cerebral humano, bastante discutido e pouco entendido até o presente
momento, acerca de seu funcionamento. É por meio dela que a história dos homens
e das civilizações mantêm-se vivas por anos a fio. Em nível individual, é o que
confere uma identidade ao próprio indivíduo, uma vez que proporciona condições
para que se lembre de quem ele é.[2]
Movidos pelo ego
como o são todos os seres humanos, quando alguém perde a capacidade mnemônica,
especialmente por motivos relacionados a doenças degenerativas dos nervos, o
primeiro temor a que todos são conduzidos é o de que não se lembre mais deles,
no entanto, ninguém para a fim de analisar o que pensa e o que teme o próprio
indivíduo submetido ao transtorno.
A condição de
não lembrar-se de quem é, de não saber mais quem se é, representa o maior
desespero anunciado para alguém. Isto é o que caracteriza a condição de
pensamento e de memória para um ser humano. Muito mais que lembrar-se de quem
é, foi ou o que fez em sua existência, podendo vangloriar-se de suas conquistas
e até envergonhar-se de suas derrotas, é a única forma de deixar marcado sua
identidade no mundo, o respeito às regras morais da sociedade na qual decidiu
crescer e viver. A própria existência, neste caso, se transforma em uma retórica
de vida, quando pautada sobre os princípios e valores daqueles que antecederam
na vida pública e na elaboração dos exemplos políticos.
Este foi um
recurso muito utilizado pelos grandes oradores e retóricos quando iam para a
frente de batalha motivar os guerreiros, a fim de que lutassem dando suas vidas
pelo país e pela causa. Era evocado todo um conjunto de ações realizadas pelos
grandes homens da história, como estes guerreirs haviam vencido seus
adversários, batalhando mesmo em condições extremamente adversas e que o
segredo da garantia do seu sucesso não estava em simplesmente lutar para
vencer, mas lutar para não morrer, o que equivaleria a não ser esquecido pelos
amigos e ainda a ser rememorado pelas gerações posteriores, por diversos meios.
Quando o mundo
se torna dividido entre aqueles que detêm o poder [e vive com um medo paranóico de perdê-lo] e aqueles que não detêm o
poder [e desejam, a qualquer custo, tê-lo],
a memória se transforma em bem e maldição, principalmente no momento em que não
se conhecia, ainda a técnica da escrita, em que todas as velhas fórmulas eram
expressas por via oral e guardadas na memória.
Ela se torna um
complicador inimaginável, porque não é possível medi-la, calculá-la ou ainda
saber o quanto determinado indivíduo é capaz de reter de lembranças e ademais,
a capacidade mnemônica de alguém pode ser falseada por ele mesmo, jamais
exaltada, porque o excesso pode ser detectado, mas a amnésia não pode ser
verificada, em sua condição de veracidade. Daí que, desde tempos muito antigos,
os sacerdotes indicarem a prática da tortura como forma de arrancar a verdade
sobre o que de fato se lembra ou não, a vítima de seu sadismo [ou de seu medo, para ser mais preciso].
A memória teve
um papel preponderante em todos os sentidos, em todas as artes, indo desde as
artes poéticas, passando pelas artes bélicas até chegar às artes políticas, de
governabilidade. O aedo e o rapsodo necessitavam lembrar-se dos textos, das
rimas, da fonética e da musicalidade total da obra, porque do contrário isto não
comove o público, não atrai a atenção dos espectadores e, logicamente, não se
manteria na lembrança do povo. Nas artes da guerra, era fator indispensável,
porque a capacidade de gravar na memória os mapas e as localizações de acesso
de seus inimigos ou a melhor rota de invasão ou fuga para os soldados aliados.
Mas, foi na arte
política que a memória assumiu seu papel mais preponderante, porque os
discursos eram memorizados, as velhas fórmulas religiosas, utilizadas para
atrair benesses dos deuses sobre o povo e a pólis. Informações podiam ser
encaminhadas a outros governantes por meio do próprio mensageiro sem que nenhum
documento existisse de fato e mesmo sob tortura, não se tinha como saber até
que ponto a informação extraída do indivíduo fosse considerada como fato. Logo,
tem-se que esta condição da memória como um elemento de benção e maldição
sobrevive até os dias atuais, especialmente na gestão política.
Memória e
retórica andam juntas desde sempre, porque todo bom orador e retórico deve
possuir, automaticamente, um elevado grau de capacidade mnemônica, o que
geralmente possui, porque ao preparar-se para uma exposição oral, uma
dialética, uma argumentação sólida, ele deve memorizar, não apenas trechos, mas
toda uma coletânea de obras e os respectivos contextos [semânticos, epistêmicos, filosóficos, sociológicos, sintáticos] em
que estas se encontram e de que forma podem tecer um diálogo concatenado
decente com a realidade presente.
A retórica pode
ser compreendida, grosso modo, como a
arte de falar de improviso; no entanto, não trata-se de improvisar um assunto,
mas de saber discursar com eloquência em meio a situações em que não se dispõe
de uma condição prévia de preparo. Pode-se, também, entender a retórica como a
arte [entendida aqui, neste contexto,
como técnica] de falar bem, com elegância, entonação, respeitando os
princípios da oralidade e da gramática da língua vernácula.
Na Idade Antiga,
a questão relacionada à boa memória era tão valorizada quanto temida, porque um
indivíduo que fosse detentor de uma capacidade admirável de recordação era
escolhido desde muito cedo para ingressar no mundo religioso, porque poderia
atender aos anseios de recitar as velhas fórmulas sagradas sem problemas, e
esta era uma preocupação dos sacerdotes, porque os deuses eram iracundos, pouco
confiáveis, de humor muito volátil, irritavam-se com muita pouca coisa que não
os agradassem, não sendo criaturas com as quais os homens pudessem contar com
sua amizade, de maneira absoluta.
Por outro lado,
os sacerdotes viviam a temer que seus deuses os abandonassem, sendo
conquistados pelas fórmulas recitadas por algum outro indivíduo. Assim, quando,
ainda que por acidente alguém ouvisse os cânticos sagrados e os recitais
canônicos, tinham a língua cortada, para que não pudessem repeti-los ou contar
para outro alguém. Mais tarde, quando surge a escrita, aqueles que eram
escolhidos para servir nas igrejas, além de terem a língua cortada, despejavam
em seus ouvidos, chumbo derretido, para que não pudesse ouvir as canções,
orações e, assim, reproduzi-las[3],
ou mesmo caso viessem a ser sequestrados, não apresentassem o menor valor para
o adversário.
Na obra de
Alexandre Dumas, O Conde de Monte Cristo,
Edmond Dantès [o herói da trama]
adquire para si um escravo que seria assassinado, depois que seus algozes
cortam sua língua. Esta prática que pode parecer bárbara e bizarra na
atualidade, por algum desavisado, é uma demonstração de que não confiava em
ninguém para ser seu copeiro e incorrer no risco de ser traído, tendo seus
planos secretos revelados a seus inimigos.
A condição
utilizada por Dantès é muito distante da que fazia os padres da Antiguidade,
até mesmo porque os fins a que se dedicava o Herói de Dumas era vingança e os
sacerdotes antigos era uma questão de vida e morte de toda uma sociedade,
porque seus deuses não tinham a menor piedade contra um bufão que afrontasse o
rito sagrado, destruindo toda a cidade junto com todos os habitantes. Este medo
da ira divina, que não poupava nenhuma alma inocente, era o que justificava a
existência de tamanha condição de violência contra supostos gênios memorísticos
e uma silenciosa conivência de toda a sociedade.
Para evitar
maiores problemas e conseguir infiltrar espiões nas altas castas e palácios, na
Idade Média, criou-se a figura do bobo da
corte[4], que
se tratava de um esperto, que além de disfarçar-se de idiota [débil mental] fingia esquecimento de
tudo o que ouvia e até mesmo do que ele falava.
Esta observância
dos detalhes que revelam um medo absurdo do poder da memória aponta para um entendimento
de que esta representa um bem e um mal, em si; uma figura dual, paradoxal, não
sujeita a um controle exato e que coloca muitas situações e indivíduos em meio
a conflitos que superam suas posições, por vezes, nem tão relevantes quanto se
possa crer pela dimensão da ação de combate ao suposto desafio.
A evocação da
memória é um artifício complexo, porque quando se evoca as boas lembranças, as
ruins vêm junto e quando se nega à memória a potencialidade de evocar as
terríveis e dolorosas passagens da vida, nega-se a ela, também, justas
passagens de amor e de felicidade, ou seja, somente ao indivíduo dotado do mais
elevado grau de valor, coisa que não fazia parte do caráter dos sacerdotes de
tempo algum, mais especialmente, daqueles que compuseram a religião na Idade
Antiga, cuidaram de utilizar suas memórias para vingar-se de adversários ou
eliminar potenciais rivais, utilizando as velhas fórmulas sagradas.
Os aprendizes
desde muito cedo eram treinados para gravar na memória longas orações e a
didática se dava no sentido de que estes repetissem, de acordo com a ordem
aprendida, seguindo todo o ritual e se não o fizesse dentro dos rigores ditados
pelo mestre, era açoitado, porque se dizia que as orelhas dos aprendizes
situavam-se nas costas. O medo de ser aplicado castigos severos fazia com que
ouvissem, gravassem e repetissem as fórmulas de maneira ilibada e perfeita,
porque assim exigia o culto sagrado e os deuses.
A doutrina era
severa e seguia princípios rigorosos, não deixando margem para que o estudante
se desviasse da mesma ou que criasse qualquer linha para além daquilo que
estivesse tradicionalmente traçado pela cultura religiosa e pelos antepassados.
Toda esta paranóia
em manter-se fiel aos princípios da tradição e da cultura e punindo, de modo excêntrico,
quem pudesse representar qualquer tipo de perigo para a manutenção da ordem
política, era porque não se sabia a dimensão da potencialidade da capacidade
mnemônica de cada indivíduo e aliado a isto estava a insegurança com que viviam
todos com relação a seus deuses e dáimones
domésticos. Os homens temiam seus voláteis estados de humor, situação a que
conduziu os povos da Idade Antiga a sobrevalorizar a memória, porque os ritos
deveriam obedecer a uma métrica rítmica imaculada e impecável, conjuntamente
com a retórica, porque o sacerdote ou o cantor sacro deveriam expressar-se,
oralmente, de forma irretocável, porque assim o exigia o culto sagrado.
Existia uma relação direta
entre a memória e a retórica na Idade antiga, em que os indivíduos exercitavam
seus discursos durante horas a fio, não somente para lembrar os textos, mas
para refinar as formas de expressão linguística. Esta é a coisa mais
interessante que se pode pensar quando se trata de estudos sobre a memória e a
aplicação dos conhecimentos adquiridos e/ou desenvolvidos sobre a realidade,
porque cada palavra expressa é produto de uma busca fina, realizada no cérebro
humano e não só por palavras ou sons singulares, como a entonação adequada à
situação, acompanhada de um estudo analítico da situação em si e do
comportamento do público como resposta.
Uma coisa é pensar uma
determinada função cerebral como tal, outra coisa é quando este mesmo objeto
como um conceito amplo, complexo, digno de estudos e que, quanto mais se
aprofunda sobre suas potencialidades e campos de ação, mais difícil de se ter
uma resposta óbvia sobre ele e ter esclarecimentos sobre como funciona se
torna, porque tudo parece muito transparente até que se pergunte como a memória
funciona, no entanto, à medida que se interroga qual o seu papel social na
formação da epistemologia, do caráter, no aspecto personológico individual e
coletivo, tudo se torna obscuro e nenhuma resposta pode ser alcançada com
objetividade e torna-se mais complicado quando se procura investigar como o fato
de mobilizar saberes macros precisa ser traduzido na captação de elementos
microscópicos, sutilezas e pormenores tão específicos que parecem ao observador
despreparado inúteis ou irrelevantes ao processo de formação e conquistas políticas.
Ocorre que foi atentando
para estas sutilezas que grandes nomes da retórica chegaram a ser lembrados e
muito mais por seus processos de superação individual, que por seus discursos,
embora isto aí se confunda, porque ma Idade Antiga e Clássica somente os
grandes retóricos eram lembrados, o restante era tratado como resto, como nada,
não como alguém que era digno de fazer parte da memória. Existe o caso de Demóstenes, que foi trazido à
memória por sua capacidade eloquente inigualável e também pela superação de sua
deficiência natural: sofria de parafasia e treinou com pedrinhas na boca até
chegar a ser um retórico expoente. Esta é uma vertente mais complexa, ainda,
que tem feito muitos indivíduos com imenso potencial a fracassarem na tentativa
de superarem os limites e tornarem-se grandes oradores e grandes retóricos. O
foco deve estar em como estes gênios chegaram ao estado de superação de suas
fragilidades naturais e a que tipo de exercícios mnemônicos e também físicos tiveram
que submeter-se até atingirem a excelência no respectivo campo da fala, porque
não bastava falar ou expressar-se bem, fazia-se necessário comover, persuadir a
assembleia, em plena ágora.
Para Oliver Reboul, a função
da retórica é persuadir, convencer pelo argumento, tanto que dá a ela esta
definição, já deixando evidente que assim o é[5],
ou seja, a função e o conceito são definidos na mesma matéria.
Um dos pré-requisitos para
ser admitido na Academia de Platão era ser detentor da capacidade de
expressar-se oralmente de modo fluente, ou seja, possuir uma brilhante
capacidade de retórica, ser capaz de persuadir a assembleia pela fala. Este foi
o motivo que levou Aristóteles de Estagira a ser admitido na famosa escola.
A retórica agrega uma
necessidade de que o indivíduo tenha capacidade para formular defesa e ataque
verbal [quase] na mesma velocidade
com que pensa as estratégias linguísticas para rebater seu adversário e se suas
palavras não forem suficientes, a sua postura corporal deve representar um
argumento poderoso no desarme, na defesa e no ataque ao seu interlocutor, que
representar-lhe-á sempre um inimigo a ser vencido, a ser convencido de sua
verdade magistral.
Geralmente, um bom retórico,
aqueles que despertam emoções e encanto em que os assiste no debate ferrenho,
são grandes estrategistas que utilizam os argumentos dos adversários contra
eles mesmos, principalmente, buscando contra atacar sobre seus atos falhos, nas
brechas deixadas por seus valores culturais e morais, que veem à tona em
momentos que a defesa não está guarnecida ou que um ponto vital foi atacado.
Trata-se de uma arte da guerra intelectual-linguística, em que se os argumentos
são verdadeiros ou falsos pouco ou nada interessa, eles devem representar o
poder para despertar o patético no ouvinte que, a partir das reações dos gladiadores,
passará a assumir uma postura mais ou menos favorável a um ou ao outro, sendo
convencido pelas estratégias de argumento e não por estes, em si.
Tudo isto apenas mostra o
elevado nível de preparo a que é e deve estar submetido o retórico, para que
possa resolver aventurar-se a participar de um debate aberto, especialmente
estes em que se disputa coisas de extremo valor, como as situações políticas e
em especial a questão do direito à liberdade, em nosso País, onde advogado de
defesa e de acusação (Promotores de justiça) digladiam no sentido de convencer o
júri sobre a culpabilidade do acusado.
Em tempos clássicos da
jurisprudência, a disputa se dava pela vida e não somente do próprio acusado a
quem defendiam ou acusavam, respectivamente, como da vida de um destes
elementos. A retórica teria que estar fundamentada na estética verbal
vernácula, em uma alocação formal das palavras em sentido de não apenas
convencer sobre sua linha de raciocínio, mas ainda encantar o público acerca da
ideia levada a efeito, na argumentação, que mais se tratava de um espetáculo
público de retórica, tendo como pano de fundo o julgamento de um delinquente.
Geralmente, os embates
retóricos são clássicos e memoráveis, não somente pela expressão de ambas as
partes que mostram-se em nível elevados e com preparo fino da proporcionalidade
e respeito ao adversário, como pela elegância dos movimentos que são
devidamente coordenados para mostrar a potência da defesa e do ataque de cada
parte litigante, porque toda ação contra em favor e contra os debatedores
retóricos. Portanto, devem ter a capacidade para falar bem, com entonação,
ênfase, segurança, demonstração de domínio do assunto sobre o qual emparte sua
locução e poder na colocação da argumentação.
Assim deve ser, porque “a retórica tem em vista a criação e a elaboração de
discursos com fins persuasivos.”[6]
Partindo desta percepção, coloca-se a retórica em um espaço singular
delimitado, privando-lhe de qualquer tipo de potencial científico
investigativo, que não seja o ideal técnico de persuadir o ouvinte, acerca de
uma verdade que se comporta de maneira peremptória, nas expressões do orador.
Isto
esclarece que a retórica visa a um tipo particular de ação do pensamento
complexo, sendo de cunho prático, muito difícil de se pensar formas de estudo e
de preparação de um aprendiz, porque este além de ser muito hábil no trato com
as palavras deve ser estudioso até o extremo do conhecimento, o que
permitir-lhe-ia fazer amplas conexões, desenvolvendo uma capacidade única de
buscar falas, pensamentos, jargões, situações inusitadas, histórias e outras
ações precisas que façam com que o retórico não perca o fio da meada e consiga
vencer o adversário no campo da disputa verbal.
O retórico
deve ser bem treinado para que, quando deparar-se com um adversário mais bem
preparado que ele e mais capaz não se distraia e termine transformando o debate
de alto nível intelectual em demagogia e conversa prolixa, coisas sem sentido e
sem a menor possibilidade para despertar o interesse do público. Há que ter postura
para reconhecer que existe alguém mais qualificado e que se preparou mais e
melhor para o jogo de palavras que o aguardava e isto, apenas coloca em
evidência a necessidade constante de estudar o pensamento e as táticas que o
adversário tem o hábito de utilizar e para tanto, não importa se se trata de um
orador ou de um grupo ao qual se tenha que enfrentar. Ideal faz-se que, quando
vá realizar uma palestra com perguntas abertas ao público que se analise e
interprete qual a dimensão do pensamento político-filosófico deste grupo,
entendendo que a psicologia grupal modifica-se, sobremaneira, quando comparada
com o posicionamento do indivíduo ante um outro em que o debate permanecerá no
nível de cada qual apresentando, defendendo e rebatendo as ideias alheias, ao
mesmo tempo em que coloca e defende as suas próprias. Portanto, trata-se de um
jogo de cartas em que a menor percepção do que é posto já deve ser passível de
interpretação e devolução a um nível bastante elevado de compreensão acerca do
objeto analisado.
O interessante da retórica é
a premissa de que deve respeitar o amplo contraditório, porque uma vez que se
trata de um debate, pesado e ferocíssimo entre duas potências, ambos com
intenções claras e diretas de convencer aos seus ouvintes, acerca de uma
verdade qualquer, quer seja a culpa ou a inocência de alguém, todas as partes
envolvidas têm o direito de posicionarem-se deliberadamente sobre o tema,
argumentando, por meio de fatos e toda a perícia de destruição do argumento
apresentado pelo rival deve manter-se no plano da estratégia retórica, onde não
se admite, na retórica, o rebaixamento ao nível da mediocridade e da ofensa
contra a pessoa do rival.
Na Antiguidade, tinha-se uma
observância estrita e cuidadosa com esta postura, porque ser um grande orador e
um grande retórico representava um privilégio inigualável, logo, nenhum deles
desejava ou queria correr o risco de terem suas imagens maculadas por um
deslize ético em suas posturas de grandes mestres e debatedores.
Uma coisa interessante
vinculada à retórica na Antiguidade e que sobreviveu até os dias atuais [de certa forma] é questão da beleza, em
que se ligava uma coisa a outra, especialmente, na condição de convencimento do
público. Para o grego da Era Clássica, o belo representa a bondade e por
extensão, representa a verdade, entendendo que, para eles, a verdade
significava memória e as pessoas têm tendência a lembrar-se por mais tempo do
que é, esteticamente, belo; logo, se o belo é bom, aquilo que um retórico belo
diz só pode ser bom.
Alexandre Júnior afirma que a “Retórica é uma forma de comunicação,
uma ciência que se ocupa dos princípios e das técnicas de comunicação.”[7]
Neste tópico, já a coloca como um elemento de disposição científica que
investiga profundamente, meios de melhorar o aspecto comunicativo, fato que
aproxima-se mais do objetivo planejado para esta investigação.
Há que
esclarecer que a retórica não é uma ciência, é uma técnica de persuasão em meio
a um debate feroz entre duas personalidades, que apresentam-se como expertos,
autoridades sobre determinado assunto, que é demonstrado por meio da
argumentação crítica. Nenhum ser humano sensato vai gastar sua capacidade de
análise e síntese contra um bufão, porque isto é algo ridículo até de ser
pensado.
É um jogo
de discussão que se situa no nível do xadrez intelectual, antevendo movimentos
e certo de que o próximo passo pode ser o destino final para um xeque-mate. Não
é uma disputa que visa determinar quem está certo ou errado, é a determinação
do convencimento de quem assiste ao debate, por quanto um retórico sempre se
dará ao valor de apresentar para um duelo diante de uma plateia selecionada,
com elevada capacidade de crítica e de pensamento abstrato.
Quando
referimos à crítica aqui, faz-se vista ao pensamento expresso por I. Kant, em
que ela significa uma pergunta pública, ampla, aberta e que visa a expandir o
conhecimento operacional, tácito e estratégico sobre determinado
conceito/problema/problemática/paradigma.
Lógico que,
como técnica, é passível de ser analisada, estudada, melhorada, aperfeiçoada em
suas táticas e performance apresentada pelo debatedor. Os desafios postos são
no sentido de superar o adversário no campo da dialética e convencer ao público
da ideia lançada.
Possivelmente, os gregos criaram a
retórica como uma forma de vencer os argumentos dos sacerdotes e não como uma
forma de fazer o povo ser convencido de uma verdade qualquer. Ocorre que,
durante estes debates em que os padres passavam aperto para se desvencilharem
das armadilhas retóricas colocadas pelos primeiros filósofos, os sophós [que foram maldosamente batizados de sofistas], geralmente ocorridos
em espaços públicos, muitas pessoas devem ter parado para observar e se
divertiam com tais ações, especialmente, vendo os seus algozes sendo moídos por
homens que não possuíam nenhuma fé e nem demonstravam o menor sinal de medo das
pragas e ofensas lançadas pelos seus adversários e isto fez surgir o desejo de
aprender tais técnicas de persuasão e dialética retórica; surgindo estudos, a
fim de determinar como funcionava esta ação e o que deveria possuir o artista,
o técnico, para poder superar seu rival no mesmo campo de ação.
Aristóteles (384-322a.C.)
caracterizava a retórica como “a capacidade de descobrir o que é adequado a
cada caso com o fim de persuadir”[8],
novamente, delimitando-a a um espaço restrito de investigação e um fim dado.
O que o estagirita coloca
como parecendo uma definição simples e direta, trata-se de uma condição que
exige uma velocidade impressionante de pensamento e de processamento dos dados recebidos
e uma devolutiva em tempo recorde, coisas que somente podem ser atingidas por
um elevadíssimo grau de intelectualidade, cognição e estudos, aliado a uma
motivação poderosa para o combate, o que presume que o adversário deva ser
alguém que mereça o respeito do retórico, caso contrário, não haverá
expectativa de um embate à altura.
Outro ponto é que se o
debate estiver limitado ao tema que um dos participantes domina com fluência e
este desafia outro alguém para este campo, ele se mostra como um perfeito
idiota, uma besta selvagem imoral, porque no campo em que se é autoridade
reconhecida, não há que desafiar alguém, a não ser que não esteja tão convicto
de suas verdades sobre o tema. Autoridades, expertos, figuras canônicas são
desafiadas por outros, menos seguros de sua autoridade, a fim de que possa
destruir um guru ou fazer fama sobre a derrota deste.
Portanto, a retórica, desde
seu surgimento não se presta a provar o que determinado ser sabe sobre algo;
ele pode ou não aceitar um desafio de alguém que tenha se mostrado à altura,
por meio de trabalhos outros semelhantes ou distintos aos seus e assim,
armam-se os teares e ambos digladiam sobre um tema comum, de interesse social,
que pode ser o mesmo que o ilustre investiga, na condição de desafiado e não de
desafiante, porque se assim o fosse, haveria uma inversão de potências, em que
o gênio é tomado por uma fraude, um indivíduo inseguro daquilo que sabe e de
que tanto se orgulha de [supostamente]
saber.
Assim que, a retórica parte
de um ponto em que sua atividade tem a intenção de render plateia, uma mostra
em que os desafios são postos como algo memorável, digno de ser assistido e que
valerá o esforço de ser lembrado, em que haverá um derrotado e um vencedor,
ocorrendo torcidas, apostas, paixão vulcânica e muito embate direto e indireto,
tanto dentro quanto fora do espaço de disputa intelectual.
Os debatedores devem possuir
um amplo e vasto domínio dos campos semânticos das línguas vernáculas a que se
aventurem a buscar expressões de caráter retórico, porque se colocadas de forma
esdrúxula, sem estar consciente de tal aplicação e o adversário apresentar o
devido conhecimento vai detonar o seu oponente, colocando a opinião pública
contra ele e seu próprio ego em condição de fragilidade, fato que pode ser
demonstrado por expressões psicossomáticas indomáveis, mesmo ao mais experiente
debatedor público, e que pode ser ponto fatídico para um golpe de misericórdia
na discussão.
A postura corporal é algo
que se explora, sobremaneira na retórica, bem como a entonação da voz, a
expressão de olhar e receber o olhar do adversário. Trata-se de uma arte da
guerra intelectual-cognitiva em que os participantes impressionam pela
capacidade de conhecimento teórico-empírico que demonstram ao público e mesmo
ao adversário. É uma arte na qual se conhece muito poucos com domínio fluente e
autônomo, até mesmo porque com os recursos audiovisuais, os agentes de marketing mesclam tais ações levando a
interferências e mediações.
Na Antiguidade, quando o
debatedor somente podia valer-se de seu conhecimento e entendimento acerca dos
fatos ocorridos, das leituras realizadas, das preleções de seus respectivos
mestres, a capacidade de dicção era um ponto que pesava sobremaneira, junto com
os exemplos citados, tendo em vista despertar o patético nos juízes e no
público.
Com relação à memória, não
ir-se-á tratá-la neste trabalho como a capacidade de lembrar elementos do
passado, antes como uma forma que os antigos utilizavam para gravar e
reproduzir, fielmente, as fórmulas mágicas sagradas. Fustel de Coulanges relata
que, se durante um repasto fúnebre, uma cerimônia pública, o sacerdote, por
acaso, escorregasse, ele deveria repetir, exatamente, este ato na seção
seguinte e em todas as outras, porque este incidente fora uma determinação divina,
logo, deveria ser incorporado ao ritual e o aprendiz deveria aprender a
executá-lo, nos mesmos moldes.[9]
A condição da memória
estava, ainda, vinculada à retórica por causa da necessidade que esta apresenta
de haver ligações diretas com o passado, com situações que ocorreram e que o
debatedor precisa buscar e trazer ao público como exemplo, a fim de
despertar-lhes o sentimento de paixão, horror ou mesmo, facilitar a condição de
entendimento acerca do que está sendo exposto durante o debate público [deixando claro que toda retórica ocorre em
meio ao público], porque com ela e por meio dela, pretende-se convencer o
outro.
Assim que, a memória é fator
imprescindível para que se execute com veemência o exercício da arte retórica,
não sendo possível existir tal ação sem que se possa prescindir de apoio
incondicional da primeira e assim sempre foi, desde que surge, como monólogo,
nas religiões arcaicas, passando pelo instante em que se transformam em debates
públicos, chegando aos nossos dias, nos moldes clássicos que se nos apresentam.
REFERÊNCIAS
ALEXANDRE JÚNIOR, Manuel. In: ARISTÓTELES. Retórica. 2. Ed. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005.
(Prefácio).
ARISTÓTELES. Retórica. 2. Ed. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005.
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Martin
Claret, 2004.
LURIA, Alexander Romanovich. A mente e a memória. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
MARROU, Henri-Iréneé. História da Educação na Antiguidade. São
Paulo: EPU, 1990.
PLATÃO. O Sofista. São Paulo: Abril, 1972.
REBOUL, Oliver. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
RUBINSTEIN, J. L. Principios de Psicología General. 2. Ed. La Habana: Instituto del
Libro, 1969.
[1] Cf. COULANGES, F. A cidade antiga. São Paulo: Martin
Claret, 2005.
[2] RUBINSTEIN, J. L. Principios de
Psicología General. 2. Ed. La Habana: Instituto del Libro, 1969.
[3]
MARROU, Henri-Iréneé. História da Educação na Antiguidade. São Paulo: EPU, 1990.
[4]
O
bobo da corte teve origem no Império
Bizantino, e no fim das Cruzadas tornou-se figura comum nas cortes européias. Hoje,
é também utilizado como expressão para se referir à alguém com atitudes bobas,
risíveis, que só serve para distrair e divertir, que não leva nada a sério. A
ideia do bobo da corte atualmente é vista de forma pejorativa, como alguém sem
conteúdo ou sem seriedade.
[5]
REBOUL, Oliver. Introdução
à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
[6] ALEXANDRE JÚNIOR, Manuel. In:
ARISTÓTELES. Retórica. 2. Ed. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005. (Prefácio), p. 19.
[7] ALEXANDRE JÚNIOR, Manuel. In:
ARISTÓTELES. Retórica. 2. Ed. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005. (Prefácio), p. 24.
[8] ARISTÓTELES. Retórica. 2.
Ed. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005, p. 95.
[9] COULANGES, Fustel de. A Cidade
Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2004.