Contos Catrumanos

Fazendo Educação




ISBN: 978-65-85101-35-6

DOI: 10.29327/5416256

Descrição: O catrumano é um ser sem salvação, reperdido nos longes dos sertões. Mas, esses longes constituem um universo que consegue ser um paraíso e inferno, ao mesmo tempo. Paraíso, porque a paisagem que adorna esse vasto mundo fora sempre caprichosa, generosa, derramando águas, veredas, ramagens, frutos, caça e, marcada, desde os primórdios, pelo Opará. 
Mas, aqui também se torna o inferno, porque não há portões ou muros que protejam essa terra. Ela, a cada dia, se esvai e se dissolve um pouco mais, sob os apelos da modernidade, como as areias das barrancas do Rio vão sendo erodidas e levadas ao oceano. Inferno, ainda, porque a valentia das disputas pelo uso da terra deu lugar a guerras sangrentas para expulsar os povos originários, dando a posse delas a um punhado de gente. 
O mestre Manoel Ambrósio foi quem primeiro percebeu isso: o apito dos vapores e o estalar do telégrafo eram sinais da invasão da modernidade. O paraíso estava/está deixando de existir: os sertões sendo roídos por fora, devoradas as paisagens, barradas as águas do Velho Chico. Com o advento das antenas de tv e, hoje, do uatzap, os reis, as folias, as marujadas, as rezas, ladainhas, os versos, os causos, o tecido do universo catrumano vai se esgarçando. Junto a isso, incluem-se as terras, antes campeadas livremente pelos pajés, pela Iaiá Cabocla, pelos vaqueiros e jagunços, e agora retalhadas, griladas, cercadas, incineradas, sob carimbos, selos e certidões suspeitosos. 
Mas, a inteligência literária e antropológica de Ambrósio fez muitas fotografias desse lugar idílico e infernal, dessa gente catrumana e dos seus algozes. Estão lá em Brazil Interior, clássico da intelectualidade do Vale das Maravilhas, obra de verve cartográfica, referência para se perscrutar os Gerais. E as encontramos, ainda, em seus romances, contos e poemas. 
E agora, chega até nós os Contos Catrumanos, coletânea igualmente fotográfica de Ramiro Esdras. Herdeiro intelectual e espiritual do Velho Ambrósio, Ramiro capturou para dentro de suas narrativas um cenário e um contexto que, em muitos momentos, dialogam com as palestras populares de Manoel Ambrósio e trazem à cena uma dicção que, antes, só os ouvidos e a pena do mestre ribeirinho conseguiram capturar. 
É a continuação do mapa ambrosiano: a exemplo do grande álbum de Jorge Luís Borges, feito exatamente com as mesmas dimensões da área cartografada, Ramiro coloca novas nuances para este lugar e gentes, cujo registro é ad infinitum, porque é sempre mutável o referente que lhe serve de modelo. 
E daí, podemos então dizer que ele é o continuador de um regionalismo literário muito peculiar, que põe em cena o subalterno e o faz falar, falar sua própria língua, tão ininteligível que, por vezes, obriga quem está fora dessas fronteiras culturais e linguísticas a consultar um glossário para compreender o ren-ren-ren (o nosso nheengatu). 
Isso é decolonialismo: colocar os de fora para falar a língua dos de cá, e não conformar-lhes a identidade da palavra livre a uma gramática. Nesse sentido, a voz catrumana canta alto e está latente em todos os topônimos, na pontuação, na escolha ortográfica, na sintaxe e nas abundantes e deliciosas perífrases (João-Padre, Nénzim-cachôrro, Graçu-pezin, Vinin-Cochérra, etc.) dos contos do livro que você, leitor, tem às mãos.  
E o que vemos nos 11 contos e 01 narrativa, esta, transcrita em quatro partes, é um passeio pelas memórias, histórias, lugares e paisagens que conformam um especial recorte do que é o pensamento catrumano. Porque, mais do que uma forma de designar o homem das áreas rurais sob a influência de um bioma e de um recorte geográfico, é preciso destacar que catrumano (quatre mains, quatrúmanes,   quadrúmanes), designação antes pejorativa, assume, aqui, uma espécie de filosofar próprio de quem habita esse "recanto lontão": uma porfia sobre o ser e estar que se descobre, por exemplo, na história de Zé-das-Panelas. 
Esse pobre, muito devoto, construiu ele próprio, emulando o sonho de Jacó em Betel, sua escada para Deus. E a quatro metros do chão, num jirau, entoava seu latim inzoneiro na esperança de que Deus o ouvisse. Acho bem capaz que tenha ouvido palavras em sua mente e, muito embora o narrador encerre o conto dizendo que o Criador não viera ter com o Zé, penso que tenha mandado Nossa Senhora, ou Santo Antônio das Serras das Araras, porque todos os incrédulos sertanejos lhe deram as costas e, tido por louco, morre o beato, exausto, faminto, torrado pelo Sol, mas firme em seu propósito.
Se isso não é a alma do catrumano? Que será mais? Nela está uma fé que não se abala, porque o catrumano é, "antes de tudo, um forte" – teria dito Euclides da Cunha, se Canudos fosse em São Romão da Vila Risonha. E ele precisa passar pelo sofrimento de Jó (que aqui podemos comparar às severidades da seca, aos problemas e mazelas da ordem mesquinha da politicagem em todos os níveis, etc.) para ter um sentimento geo-poético pelo seu chão. 
Outro catrumano pensador é o protagonista de Cassiano e o onça. Um "cabocãozão-sarará", ele tinha o defeito de gostar demais da cachaça. E, numa noite de bebedeira, vê-se sozinho diante do "gatão da campina". Mija-se e treme-se, vendo a morte à sua frente.  Contudo, era capaz de intuir as razões da onça para saber-lhe o modo de escapar da mordida. Eis, portanto, uma filosofia animista que, ao contrário da onda anti-ecológica que tem varrido os cerrados, incorpora a natureza ao modo de cismar, porque tem os quatro pés no chão. 
Na linhagem dessa filosofia quatromana, também se inserem o Velho-Sábio Levi Carneiro Magalhães, o poeta-professor João Damascena de Almeida e Valter Carneiro José – o Valtão. Além do manancial inesgotável que é o pensamento de Manoel Ambrósio, que Ramiro conhece como poucos neste planeta pois anda a tracejar os alfarrábios do mais arrojado januarense de todos os tempos, o autor bebe na fonte desses memorialistas, de onde tira a inspiração para criar as narrativas que o leitor tem debaixo do nariz. Dessas fontes lontãs surgem personas distintas, mas também familiares, a exemplo do miserável Rifino, a gulosa Marta, o baiano Zé da Quixaba, o gato Rumão ou o português do armazém.
De modo que, os Contos Catrumanos dão seu nó no fio das ideias que acaba por pensar o todo, ao pensar o particular. E prova disso é a presença de Antônio Dó, o herói por metade ("severo bandido, mas por metade", como escreveu Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas). Dó sai das narrativas que, desde o início do século XX, pululam nas barrancas do São Francisco, para as páginas do livro. Esse jagunço mineiro é a chave para entender a natureza dual do catrumano, que é a mesma natureza de todo homem: carregar em seu coração os signos do bem e do mal. Dó era capaz de matar muitos, invadir cidades e guerrear, ao tempo em que devolvia, direitinho, as tropas de animais que tomava emprestado aos sertanejos pobres. Em suma, o catrumano, à vista dos contos, parece possuir uma ética própria que lhe dá a integridade para escapar incólume das guerras e embaraços pelas quais deve passar. 
Portanto, os Contos Catrumanos são a porta de entrada para esse paraíso/inferno que descortinamos na prosa bem medida de Ramiro Esdras. Misturada ao ritmo da narrativa que lembra aquele das histórias contadas ao pé do fogão, no balcão da venda, a fala do Ramiro sertanejo-antropólogo também se imiscui nesses textos, etnografando o médio São Francisco, como fez Ambrósio, e cartografando a própria vida nos pontos cardeais da ficção. 
- Salve Ramiro!
- Pedro Borges Pimenta Júnior

Transcrição e Revisão: Ana Sophia de Matos Carneiro; Ramiro Esdras Carneiro Batista e Saulo Esdras de Matos Carneiro

Capítulos
Prefácio

GERAIS
Zé-das-panela resolveu falar com Deos
Rifino pé-de-rolinha, o miserável
O gato Rumão e a bonecôna-de-chita
Encostos e livûzias
A Cabocla do Carinhanha
Cassiano e o Onça

COMÉRCIO
O balão de bosta do português
Cigarrinho da Sciência
Reis de Briga

AMOR
Lugares Formosos
Ecce Homo

GUERRA
Antônio Dó homiziado na Bela Lorena – memórias de Valtão e Levi Carneiro
A encrenca
A jagunçada
A fuga
A êmpatia

MEMORIALISTAS
João Damascena de Almeida
Levi Carneiro Magalhães
Ramiro Esdras Carneiro
Valter Carneiro José


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