ISBN: 978-65-85101-36-3
DOI: 10.29327/5416257
Descrição: Em 1923, o januarense Manoel Ambrósio Alves de Oliveira (1865 - 1947) publicou pela Imprensa Oficial de Minas Gerais o livro Hercilia: romance histórico, no qual narra os infortúnios de uma donzela sertaneja, filha de um fazendeiro radicado nas proximidades de Januária - MG, quando tenta viver um amor proibido com o vaqueiro da propriedade. Ao descobrir-se grávida, a jovem foge da ira do pai, o Capitão Leal.
Considerando o subtítulo da obra, é possível que esse enredo tenha sido inspirado na lenda surgida em torno do bandeirante português Manuel Nunes Viana, que teria “lavado” a honra pa¬terna em razão do suposto envolvimento de sua filha com um rapaz de parcas condições. Essa foi, a propósito, a inspiração de Ambrósio para escrever o conto A filha do general emboaba, de Brasil Interior (1934).
Em Hercilia, contudo, esse enredo básico foi transposto para a segunda metade do século XIX, com personagens diferentes. Ao narrar a história da heroína, o autor esboça, como pano de fundo, uma espécie de cartografia ficcional que registra as paisa¬gens, os dialetos e tipos humanos dos sertões sanfransciscanos, abarcando não apenas o território mineiro, mas alcançando tam¬bém o calcinado Cariri, no Ceará, violentado pela terrível seca de 1840. Nesse “mapa” figuram as “caatingas, capões, furadas, várzeas, campos, prados” (p. 9) do sertão mineiro e também os vaqueiros, indígenas, barqueiros, jagunços, migrantes da seca e escravos que o povoavam.
Todos esses tipos estavam sob a autoridade dos grandes pro¬prietários de terra, especialmente as senhoras e moças de “boa cepa”, cuja honra os mandatários consideravam propriedade suas, como ocorre à infeliz protagonista: “Sou um pai deshonrado, co¬berto de infamia, de opprobio, desgraçado por toda a minha vida. Preciso desabafar este peito e estas barbas velhas” (p. 66).
A perda da virgindade e a desonra paterna são, pois, o proble¬ma em evidência no romance: “Hercilia transviara. Desfolhara-se a formosa grinalda de seus sonhos de virgem” (p.51). Aos olhos daquela sociedade, a gravidez de Hercilia e sua fuga com o va¬queiro Angelo consistiam num ultraje e precisavam ser punidos, principalmente naqueles sertões onde, segundo Ambrósio, a cólera e a vingança de um pai eram consideradas infalíveis, sempre aço¬dadas pela curiosidade e alarido dos vizinhos: “Os curiosos davam extensas voltas nos mattos, agachavam-se nas moitas vizinhas e dellas viam de longe o capitão meditabundo” (p.56).
Além desse núcleo temático fundamental, é possível destacar em Hercilia alguns elementos que lembram recursos narrativos celebrizados na obra de José de Alencar. Assim, tal qual em Irace¬ma, Ambrósio insere animais na trama para simbolizar a natureza dócil e frágil da donzela: “Nesse iterim, voando de sua gaiola de pau, pousa-lhe no ombro seu papagaio em amorosa tagarellice” (p. 41). A intrepidez do vaqueiro Angelo evoca a valentia de Peri: “não raro topava monstruosas sucuryús e mortíferas cascaveis [...] calcava aos pés aos mais perigosos monstros [...] e, lá, onde apenas sussurram os ventos e os filhos das florestas embalam os sonoros cantos, chegava Angelo” (p. 24 - 25). E, por fim, a cena eletrizante em que o rapaz impede que Hercilia seja dilacerada por um touro feroz recorda, em alguma medida, os remates de O sertanejo.
Esses pontos de intersecção com a obra do escritor cearense não permitem conjeturar que Ambrósio tenha capturado as tra¬mas alencarianas para pô-las em seu livro ou mesmo equiparar a produção literária de ambos, dados os contextos, projetos e estilos diversos. Antes disso, é possível compreender que tais arranjos narrativos façam parte de um repertório comum às criações que têm os sertões brasileiros por cenário, com a vantagem, no caso do januarense, de tê-lo acessado diretamente, in loco, já que Ambrósio fora um andarilho com pretensões arqueológicas, na¬turalistas e historiográficas, evidentes em vários de seus livros e nos documentos de seu arquivo pessoal.
Nesse sentido, é razoável posicionar o romance Hercilia, assim como outros textos ambrosianos, no que se convencionou chamar de regionalismo, considerando o interesse ficcional em desvelar os ambientes rurais ainda não perscrutados pela representação literária. Contudo, o regionalismo presente na obra de Ambrósio poderia ser mais bem delimitado pelo que Albertina Vicentini (2007) chamou de literatura regional sertanista. Tal conceito ex¬pressa não apenas uma preocupação com o mundo rural brasileiro, mas abarca a ficção produzida no e sobre os sertões, esses espaços pouco conhecidos do público litorâneo que obrigavam alguns au¬tores a se esmerarem para atingir altos níveis de verossimilhança. Igualmente, a violência que grassava nessas paragens inspirava, invariavelmente, enredos épicos, como na presente obra e em Antônio Dó: o bandoleiro das barrancas (1976), por exemplo.
Ainda no plano do conteúdo, é importante destacar as nuan¬ces góticas que escapam da trama, sobretudo nas passagens que introduzem e retratam o desfecho violento da protagonista. As¬sim, o capítulo XII consiste na longa descrição de uma paisagem totalmente diversa dos cenários amenos apresentados até então. Parece ser o divisor de águas da narrativa, pois marca o início dos relatos trágicos enunciados, de relance, nas primeiras páginas. No trecho a que nos referimos, o narrador retrata uma natureza selvagem e enfurecida, em agonia: incêndios terríveis na mata, calor insuportável, lua em brasa viva, a luz rompendo a custo o “sendal funéreo!”(p.48), cinzas cobrindo as águas, a floresta estremecida por um “vento feral” (p.49), lobos, serpentes, onças bravias. Todo esse cenário noturno e assustador prenuncia fato terrível, revelado pelo capítulo XIX, no qual o leitor é levado a presenciar “o mais horrivel quadro que se pode imaginar” (p.77).
Essa estética presente na trama (assim como ocorre em A Er¬mida do Planalto, de 1945) é reforçada com a figuração das ruínas da outrora abastada fazenda do Capitão Leal em contraste com a paisagem paradisíaca descrita no início do livro: “Que ruinas mysteriosas são estas, que nos attraem nas scenas da solidão?” (p.10). Além disso, o tema da cruz à beira da estrada, lembrando ao mesmo tempo a finitude do corpo e a imortalidade da alma, é retomado por Ambrósio em Hercilia: “A cruz na estrada! Oh! desengana-te, se te disserem que a fatalidade verdadeira é triste e dura. Caminheiro do sertão, quando encontrares uma cruz na estrada, tira-lhe reverentemente o chápeo” (p. 72). A cruz solitária ecoa na natureza a voz dos mártires que, inocentes, pedem justiça pelo sangue derramado nos violentos grotões.
Além disso, a obra também ganha relevo por ter sido original¬mente publicada em formato de folhetim, provavelmente entre 1902 e 1903, no jornal A Luz, dirigido pelo autor. Esse detalhe ajuda a compreender como o escritor, que assinava os capítulos utili¬zando o pseudônimo Brazil do Valle, imprimiu suspense e tensão à obra na intenção de cativar ainda mais o leitor. Assim, quando cotejamos os raros vestígios do folhetim com o livro publicado em 1923, percebe-se a mão revisora de Ambrósio, acrescentando e ajustando o texto ao novo suporte. Nesse sentido, leves altera¬ções demonstram a preocupação do romancista em peneirar as palavras, lustrando-as para causar melhor impressão no público.
Observa-se no livro, ainda, um admirável trabalho de mi¬neração vocabular, empregado especialmente nos trechos que descrevem com detalhes a paisagem sertaneja: “A carobeira do valle abria as sanefas rôxo-azues de seu sagrado calyce, e as flores côr de ouro das carahybas se derreavam languidas ao sopro da viração” (p. 46). Tais descrições oferecem pistas sobre as emoções das personagens e quanto ao desenrolar da ação, provocando no leitor uma experiência sinestésica, em passagens como esta: “E colméas da floresta, ventos das ramagens, passarinhos dos pra¬dos e vargedos alegres enleavam-se; e esse canto, esse zumbido, essa calma, esse ecco, eram flores d’alma, aromas de odorantes calyces á margem dos ninhos frescos, humectados do rocio santo das madrugadas [...]” (p. 40).
O esforço do escritor em criar uma atmosfera sertaneja para o leitor também pode ser observado nas cinco partituras publicadas ao final do livro. As duas primeiras, O canto do sabiá e Da mãe da lua, de autoria de Mamede Longuinhos (tenente das forças públicas e responsável pela coletoria de impostos de Januária), evocam o canto de duas aves de que tratam os respectivos títulos, mencionadas nos capítulos X e XII, brevemente. Outras três par¬tituras, Cantiga popular [1], Cantiga popular [2] e Batuque, são de autoria do maestro Elysio Horbylon, natural de São Francisco - MG, e fazem referência aos “cantares rusticos, acompanhados á viola dos filhos do sertão” (p. 18) que animaram os festejos do batizado da protagonista e de Angelo, retratados no capítulo IV da obra.
Motivado, provavelmente, pela qualidade estética que atin¬gira, Ambrósio remeteu exemplares de Hercilia a intelectuais do Rio e de São Paulo. Apenas em junho de 1924 o livro recebe a atenção de um expoente da crítica carioca, Agrippino Grieco. Porém, contrariando as óbvias expectativas do autor, o articulista fez duros comentários à obra na coluna Vida literária, veiculada em O Jornal. Famoso pelo sarcasmo e ironia, o crítico desancou, injustamente, a linguagem do romance, que chamou de “tabelliôa”, fazendo troça, ainda, da preocupação do autor com a represen¬tação da paisagem. A crítica de Grieco pôs o livro de Ambrósio, inadequadamente, ao rés dos romances de sensação, terminologia utilizada para referir-se àquelas obras que se notabilizaram por trazer enredos com assassinatos cruéis, ações violentas e reviravol¬tas emocionantes. Embora esses elementos estejam presentes no livro, uma análise atenta levaria a conclusões menos apressadas e superficiais e demonstraria as qualidades da escrita do januarense.
Infelizmente, isso não ocorreu. A recepção de Ambrósio foi mais feliz quando circunscrita às agremiações dedicadas ao estudo do folclore. Isso pode ter eclipsado, de uma ou outra forma, o interesse pela produção ficcional do autor. O mesmo se dá quanto à produção jornalística, que merece atenção de pesquisadores, especialmente no resgate, se isso ainda for possível, de exemplares de A Luz que tenham resistido às traças.
Nesse diapasão, decorridos quase cem anos da publicação do romance (e cerca de 120 anos do folhetim), a presente edição de Hercilia, bem como a reedição e publicação de outros livros do autor, permitem à nossa geração um movimento de justiça e reparação quanto à recepção displicente e preconceituosa, ao apagamento e silenciamento sofridos por Manoel Ambrósio e sua obra.
Para nossa sorte, a memória do sábio de Januária está mais viva do que nunca.
- Salve, Ambrósio!
- Pedro Borges Pimenta Júnior
Organizadores da 3ª edição: Pedro Borges Pimenta Júnior e Ramiro Esdras Carneiro Batista
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